Toninho Lombriga e as estradas do tempo

 
   Numa  época, se eu não troco as marchas final dos anos 70 do século 20, eu trabalhava numa revista dedicada a caminhoneiros  de onde tirava o meu sustento.Naquela redação tive contato com conhaques de boa cepa, com festas juninas cheias de quentão, convivi com o melhor e o pior do gênero humano. Havia ali vilões e heróis, mocinhos e bandidos. Numa noite, grogue numa festa em Embu das Artes um idiota que trabalhava em uma revista concorrente soltou um rojão perto do meu rosto. Fiquei bem machucado e perdi para sempre meu tímpano direito. A esse incidente devo até hoje um zumbido constante e intermitente que muitas vezes me tira o sono. E quando me tira o sono volto para aquela festa , tantos anos atrás, onde até o amanhecer eu  não havia percebido o tímpano furado até que botei a cabeça debaixo da água fria e as gotas que escorreram para dentro do tímpano perfurado me fizeram uivar de dor. O zumbido herança disso só passa quando durmo profundamente mas naquela época tudo o que eu queria era não dormir nos fins de semana ou mesmo durante a semana. Queria o dia com muito mais de 24 horas para poder explorar todas as abóbadas celestes e infernais , subir com meu novo amigo Josias e a esposa ao alto do mais alto morro de Campos de Jordão e emitir gritos tribais ( ou primais ?) que eu não sabia para o que serviam mas haveriam de servir para algo. Pelo menos para espantar fedores ou atrair discos voadores. E ali ,no alto, assamos batatas doces e pinhões, tomamos quentão e vinho quente, rimos e uivamos para um vale de poucas lágrimas logo abaixo. Onde estão os ecos e uivos daqueles tempos ? Onde está nosso correspondente caminhoneiro Gevi Dilda de Nova Prata, Rio Grande do Sul ? Onde foram  parar as histórias do veterano Setembrino Vieira de Souza ,de Passo Fundo, que morreu e virou nome de rua em sua cidade ? Ele que inspirou o caminhoneiro Bino  de uma série televisiva. Onde estaria o desembargador sisudo e formal Abeylard Pereira Gomes que colecionava frases de pára-choques e até lançou um livro a respeito? Que fim teria levado Henrique Leça, o escritor – caminhoneiro ? E por que partiu tão cedo Marquinho Souto Maior , o patrono de tudo isso, um jornalista que amava toda essa fauna e me incentivou a investir na criação de um personagem caminhoneiro chamado Toninho Lombriga ? Onde estão todos esses caminhos e estradas agora esfoladas pelo tempo ?
Lázaro era o melhor repórter dessa revista. Talvez pela sina que o nome lhe emprestava  ressuscitava cada vez melhor como repórter após porres quase terminais. Lázaro era o último estágio do alcoolismo que ao se misturar ao seu talento podia produzir resultados notáveis como quando descobriu  que havia em São Bernardo do Campo uma caminhoneira pernambucana que trazia abacaxi de Sapé na Paraíba. Dito hoje isso pode soar normal mas em 1979 mulher caminhoneira era uma raridade e só ficamos sabendo dela  através do empenho e talento do Lázaro que a descobriu numa fila de frete. Ele , o repórter que esquadrinhou o Brasil na boléia dos caminhões. Andou pela Belém–Brasília, pela Transamazônica, e pela Cuiabá- Porto Velho. Até na rodovia Panamericana ele foi parar e de todas estas estradas trouxe relatos e histórias sensacionais que ou punha no papel ou nos contava  com a barba e o bigode lambuzados de calabresa com cebola  mais cerveja e jurubeba que tomava em copos longos com muito gelo.
Muitas das histórias de Lázaro eram pura invenção, outras eram meias verdades com meias invenções. Mas ninguém se importava com isso pois o encanto dele contando as histórias é que valia a pena.  O Brasil visto por ele ficava mais vibrante, mais contraditório, mais empoeirado, mais cheio de lassidão e preguiça, mais malemolente ,mais com cheiro de feijão temperado, com cara de peixada e mungunzá , com cheiro de perfume barato. Vinha embalado em canções de Milionário e Zé Rico, Waldick Soriano, Reginaldo Rossi, Nalva Aguiar, vinha cheio de luzes dos lupanares e repleto dos guardas rodoviários gordos e corruptos que extorquiam a classe caminhoneira já naqueles idos. Lázaro mantinha o gosto pela reportagem numa revista modesta que não era lida pelos intelectuais mas que tinha mais histórias e verdades do que muitas das maçantes publicações de esquerda daquela época. Ele e suas reportagens autênticas não queriam manipular nada. Lembro de uma delas, uma saga rodoviária pelo perigoso interior do Pará  que tinha como título “O sol como guia e os buracos como companhia”. Esses textos queriam só contar o que tinha para ser visto e puxar sardinha para os caminhoneiros, classe  obreira,explorada, eternamente injustiçada.

Comentários

Postagens mais visitadas