é hoje e poderia ter sido ontem

                                                       
Resultado de imagem para convocação para as manifestações de 13 de agosto
Hoje atos por todo o Brasil , a tsunami da educação, contra as barbáries perpetradas por esse desgoverno. Coincidência ou não acho nos meus alfarrábios o capítulo 11 de um romance iniciado em 1986, mexido em 2016 e jamais publicado. Foi ontem mas poderia ter sido hoje...incrível como muitas vezes o mundo dá voltas sem sair do lugar.

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    Infelizes e conscientes de nossa inferioridade tribal caminhávamos todos juntos pelo gramado nos imaginando jovens existencialistas que “aquentaram” Paris em maio de 68. Eu particularmente queria ser Daniel Cohn-Bendit, Dany , Le Rouge. Inteligente, ousado , polêmico. Vestia minhas calças vermelhas como na letra de “Vapor Barato” , uma camisa rota, barba comprida , cabelos revoltos. Fumava “Rolíude” , bebia pinga com limão. Acreditava que os conceitos de Trotsky eram a salvação da humanidade e que naquele instante era preciso radicalizar.
            Infelizes mas certos de que íamos defender uma grande causa chegamos a sorrir naquele dia. Eu estava preocupado em desempenhar um bom papel, não deixar  a peteca cair,mostrar minha liderança em situações difíceis. Éramos um grupo coeso de opiniões distintas, dá para entender ?  E caminhávamos a passos acelerados, uma improvisada  Rosa de Luxemburgo ao nosso lado com um cravo vermelho entre os cabelos. Todos apaixonados por ela. Mas naquele instante não havia espaço para tesão. A missão concreta estava ali a nossa frente , a poucos passos de nós.
            De longe, quase correndo pelo gramado, podíamos ver outros grupos chegando de outros pontos da cidade Universitária.  Pequenos ou grandes mas aparentemente organizados. Com um objetivo comum determinado pela Assembléia do Diretório Central dos Estudantes. Subir na marquise do prédio da reitoria e interditar a portaria . Objetivo final : pedir a renúncia do reitor nazi-fascista.
            Eu e meu grupo da Escola de Comunicações e Artes estávamos em 19 pessoas. Crentes que representávamos a maioria. Nossa assembléia foi  pró-forma porque já sabíamos para onde conduzi-la. Seria só uma questão de habilidade que, modéstia a parte, eu tinha.  Mas, no fim das contas, aprovada nossa adesão ao movimento de tomar a marquise , poucos foram os que nos acompanharam. Muitos companheiros cagões deram pra trás.
            E lá fomos nós, quixotescas criaturas, pelo gramado. Pena que não tivéssemos nenhum hino revolucionário para cantar. O clima era propício e, confesso, até que deu vontade de assobiar a “Marselhesa”. Mas eu só sabia um pedacinho e achei que poderia soar ridículo.Fiquei de assobio selado. O importante na verdade era ir em frente. Só com aquela manifestação de força talvez o reitor fosse sensível aos nossos apelos. Queríamos eleger nossos próprios dirigentes. Queríamos mais verbas para os nossos projetos de jornais laboratórios e filmes experimentais. Queríamos professores menos burros e com alguma experiência em redações de jornais e revistas que efetivamente pudessem nos dar alguma contribuição para o futuro. Não queríamos meros burocratas. Queríamos muito menos teoria e mais prática.
            O pessoal mais politizado da Física e da Química carregava uma porrada de cartazes : “ Se o reitor não ceder o pau vai comer”, “Abaixo a repressão”, “Viva a democracia” e assemelhados. Ao meu lado, gordo, pesado, bufando, seguia Arnaldo , de boina preta, estrela vermelha no peito, camiseta com a cara do Che Guevara. Todos nós tínhamos em nossos quartos inevitáveis cartazes mal impressos onde Che dizia que era preciso endurecer sem perder a ternura jamais.Arnaldo um dia esqueceria isso tudo à frente da comunicação corporativa de uma multinacional. 
            Quando os grupos começaram a se cruzar se ouviram “vivas”, hurras, abraços , apertos de mão, beijos na boca. Perto dos alicerces nunca acabados do Museu de Arte Contemporânea seguíamos todos juntos num grupo que, à primeira vista, pareceu grande. Exército juvenil de Brancaleone esperávamos que a polícia chegasse a qualquer momento  com suas bombas de gás , seus cassetetes anti-democráticos , sua vontade de descer porrada. Mas não tínhamos medo. Queríamos mais que o pau comesse.  Eu, vaidoso, tinha particularmente esse desejo já que em poucos minutos a imprensa deveria chegar a procura de boas fotos,um conflitozinho para dar na primeira página naquela tarde fria do mês de agosto.
            Já imaginava as manchetes do dia seguinte e as queixas do governador esclerosado  que diria que todo o movimento era iniciativa de meia dúzia de agitadores profissionais que tinham “a intenção de desestabilizar o governo” e todo aquele bolodório que há séculos os governantes repetem. Já imaginava no que ia dar toda aquela nossa marcha para tentar a derrubada de nossa pequena Bastilha.
            Chegamos até que organizados ao nosso centro de operações. Os dois guardas da portaria simplesmente se retiraram e não ofereceram qualquer resistência. Com uma tosca escada de madeira escalamos a marquise  e lá ficamos plantados. Umas 25 pessoas.  A portaria também foi ocupada. Surgiu um megafone, uma barraca amarela foi montada  e uma fogueira foi logo feita. Seguiram-se discursos, protestos, palavras de ordem, inevitáveis conflitos de idéias entre as 1800 fatias da esquerda juvenil que ali se concentravam.
            Eu falei, claro. Firme e decidido fui até aplaudido. Defendi com ênfase a posição do pessoal da Escola de Comunicações e Artes. Não queríamos simplesmente a saída do reitor. Era preciso que ele se comprometesse por escrito  que seu sucessor fosse eleito pelo voto direto. Também dávamos nosso integral apoio a greve dos funcionários e servidores da Universidade que brigavam pelo reescalonamento  de salários.
            Os discursos se multiplicaram, os jornalistas zanzavam de um lado para outro como baratas e os policiais foram cercando toda a área . Apareceu a cavalaria, camburões, caminhões com a tropa de choque. O milico-chefe disse em alto e bom som que queria que a gente saísse da marquise “numa boa”. Senão eles iam subir e nos tirar a força. Pagamos para ver.
            Começou a xingação de lado a lado .Um papel voando dali, um tapa na orelha acolá, mães sendo avacalhadas de ambos os lados e o pau acabou comendo solto como todos já esperavam e os jornalistas queriam para gáudio dos noticiários. As câmeras das tvs filmavam sem parar cenas que todos sabíamos que nunca iriam para o ar pelo bunda-molismo dos editores de tv muito mais realistas que seus reis. Os fotógrafos disparavam suas câmeras flagrando policiais tomando tijoladas, estudantes levando murros na boca e tendo as roupas rasgadas,bombas de gás pipocando e toda aquela coreografia manjada dos  enfrentamentos.
            Por fim negociamos que sobre a marquise ficaria um grupo pequeno e ninguém mais subiria enquanto tentaríamos um diálogo com o senhor reitor. No entanto os policiais ficaram ali do lado nos vigiando. Continuaram as provocações e passadas duas horas a porradaria rolou de novo. Um paspalho infiltrado subiu na marquise  e começou a me xingar. Fui tomar satisfação e ele me empurrou .Consegui dar um soco na cabeça do sujeito mas aí tomei socos por todo o corpo. O sujeito era treinado pra dar porrada e quando começou chegaram mais dois para ajudar o paspalho. A mulherada gritava lá embaixo, arrancava os cabelos e urrava para os espancadores :
--- Assassinos, covardes, filhos da puta!
            Todo socado fui parar dentro de um camburão com mais  três que nem do Campus eram. Fiquei sabendo depois que era um secundarista e dois trombadinhas. Com muita negociação e papo furado jogado pra cima de um tenentinho arrogante acabaram conseguindo me tirar do camburão e fui recebido aos beijos, abraços e caí nos braços da multidão. Dia seguinte minha foto espancado saiu em todos os jornais .
            Por fim a marquise foi desocupada a força, o reitor continuou sendo o fascista , os funcionários seguiram ganhando pouco ,minha mãe quase morre de desgosto com a certeza de que eu era comunista mas consegui ser Daniel Cohn- Bendit por um dia.

            Todo esse relato  foi examinado cuidadosamente por Walter Berg num caderno de anotações de Henrique Coimbra escrito numa letra filha da mãe de ruim . O caderno tinha folhas amareladas, uma capa preta dura. Eram, digamos, “quase memórias” e o texto não tinha data . Fazia parte de um longo relato do falecido repórter que foi confiado a Abramides,  sua antiga namorada.
            Na capa do tal caderno de capa preta havia uma etiqueta esmaecida onde se lia um óbvio título  “Diário de Bordo” o que dava a entender que os principais episódios de um período da vida de Coimbra estavam ali registrados. Poucos eram datados mas muitos eram curiosos. Coimbra teria sido um escritor razoável, pensava Berg. Até sua morte na Itália ,ainda jovem, passou por uma porção de lugares. Jornais, revistas, emissoras de rádio. Só não teve experiência na televisão que considerava um veículo menor até porque se considerava  um “homem somente de texto”. Não dizia “profissional do texto” mas “homem somente de texto”.
            Coimbra chegou a ser preso três vezes por sua militância estudantil . Primeiro trotskista, depois anarquista. Apesar de nunca haver se aventurado pela literatura cometeu aos 20 anos um livro auto financiado de poesias  com o título nada sutil de “Pico de Vida”. Ganhou dois prêmios fajutos de jornalismo que só lhe interessaram pela grana que o fez viajar pela América boliviana e peruana e por parte da Europa turística.
            Um detalhe que chamou a atenção de Berg no diário de bordo de Coimbra foi a epígrafe, repetida sempre a cada dez páginas, que confirmava que nunca o repórter abandonou o anarquismo : “ Quem quer que  seja que ponha as mãos sobre mim,para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo”. ( Pierre Joseph Phoudon)

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