Nós, o justiceiro, acreditamos em ressurreição


O PISTOLEIRO DO RIO VERMELHO (The Last Challenge, 1967 ...

NÓS,O JUSTICEIRO, ACREDITAMOS EM RESSURREIÇÃO

Nós somos um previsível justiceiro. Estamos numa maré econômica enrascada e o ano é 2016. Tomamos cachaça em pequenos goles pra desanuviar mas estão fritando a nossa presidente junto com a linguiça que comerei com farinha. Nós temos um olhar soturno. Em nosso passado há muita luta atrás de democracia e agora estão colocando a nossa no abismo. Temos receio. Por isso bebemos cachaça.
    A porta do impeachment se abre. Entram bandidos togados, deputados safados e gente da pior laia que põe a presidente eleita pra correr. Inventam um golpe parlamentar e nós fingimos ignorar os safados. Mas os safados tomam o poder de assalto e lá colocam um amargo vampiro de mãos de gárgula e retórica de tumba. Por isso bebemos cachaça. Os bandidos se aproximam de nós e vão nos roubando direitos. Eles nos insultam , riem de nossa cara. Nosso coração se aperta. Não queremos depor ninguém muito menos pela força. Mas precisamos abrir uma exceção para o amargo vampiro.
      Tentamos juntar forças para o duelo mas as forças se esvaem , ninguém se entende e no saloon os dias passam e o amargo vampiro fica ajudando a desconstrução para o pior que vem depois.Ficamos apreensivos , tomando a cachaça em pequenos goles, agora com limão, porque tudo vai ficando mais azedo. Caminhamos lentamente em direção a um pôr de sol mas ele já não está lá. Roubam-nos a luz, a esperança ,os dias melhores que deviam vir.
     Entramos em nossos aposentos e ficamos pensando , cada qual no seu canto. Nos deitamos com as roupas do corpo , olhamos o teto e tomamos mais cachaça.Com ou sem limão. Sem açúcar e sem afeto. Suspiramos e temos remorsos. E temos medos e assombros e daí para o lugar do amargo vampiro organizam uma enorme conspiração de mentiras e manipulações, vilanizam a presidente deposta e o seu partido  e elegem por fim- mais do que um amargo vampiro – um monstro, uma aberração que não sabe  sequer conjugar verbos e  não leu cinco parágrafos na vida. É uma espécie de Mussolini do vale do Ribeira  e ainda assim suspiramos com esperanças. Nós somos um previsível justiceiro que não sabe como fazer justiça.
    Agora, quando deveria ser manhã fica de noite. Quando é de noite ela fica mais escura e mais espessa. Levantamos da cama e queremos duelar no pôr se sol que já não há com o Mussolini tosco . Colocamos o cinturão e uma garrucha na cinta. Não queremos violência mas como fazer se foram violentos com a gente ? Descemos para a rua e o vento e aqueles seixos móveis dos faroestes nos aguardam. A população atrás das janelas está de olho em nós. Uns torcem por nós , outros pelo Mussolini . Aí ficamos frente a frente com ele. Ele vê nosso olhar soturno e seu riso de analfabeto se apaga. Vê que desejamos o mal eterno pra ele. O Mussolini nos desperta os piores instintos.
     Vemos o elemento e sabemos que é mais do que apenas um pobre diabo. Ele é o diabo em pessoa com sua família de estetas da violência e da abominação. Ele é uma praga, uma aberração.Pobre tosco Mussolini perigoso. Temos o ódio nublando os nossos olhos e o inimigo percebe. Não devia ter nos afrontado tanto. Agora queremos o mal dele, a sua total extinção.Agora ele parece estar aterrorizado. Seus dentes feios, sua pele macilenta e sua retórica podre fedem a olhos vistos.Que coisa triste que apodrece a nossa frente.
    Uma lágrima cai sobre o chão poeirento. É nossa, representando tantas lágrimas de tantos milhões que não colocaram esse monstro aqui , com poder, na nossa frente.  Aí levamos a mão ao coldre, alisamos a arma. Mussolini tosco gosta de armas, nós não gostamos. Mas é ela que nos protege. No entanto não sacamos.É o Mussolini que saca , vemos a arma na mão dele, ouvimos o disparo , a bala vem direta e reta pro nosso peito , vai morar no nosso coração. Sentimos dor e tombamos. Mas não morremos diante do riso tosco do verme.Nós,o justiceiro, não morremos de verdade.Nós,o justiceiro, estamos atarantados. Precisamos reunir os nossos lados porque mesmo diante da peste , da ignominia , da escrotidão, nós, o justiceiro acreditamos na ressurreição.

14 de abril de 2020
Texto  inteiramente inspirado no notável conto “Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade” de Moacyr Scliar.  

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