QUARENTA ANTENAS

 


QUARENTA ANTENAS

(quarentenas) 

(um poema pandêmico)

 

Estava eu achando que havia um porto seguro

Nau do futuro

Maçã do amor, ode ao despudor

 

Aí crava a lança no despeito do destino

Desatino, eclipse solar, disfunção lunar

O que era veloz

Passou a devagar

 

Divago bossas

Destroço roças via satélite

Os meninos desdentados nos acenam

Sobre muros da faixa de Gaza

 

Quarenta antenas

Me levam para fora do país

Deixei de ser um turista aprendiz

Sorrio por telepatia

Na mais pura antipatia

 

Dou posse ao meu próprio mandato

Destituo meu ministério

Cuspo no próprio prato

Ponho uma mochila puída nas costas

E caio na vida que sobra

 

E entre máscaras

Que me escondem dos problemas

Não tusso porque não posso

Não posso porque vou ao fosso

 

O avião amarelo não vai partir

Tiradentes desmontou a farsa

E o destino me deu traição

 

Na baía da canção

Descomponho letras

Subverto memórias

Noites são dias

Dias são poemas podres

Sempre a repetirem a mesma métrica

 

Mora na monotonia

Para que rimar amor e flor

Que se enroscam em quarentenas antenas?

O sinal aqui em casa está muito ruim

Interestelar interferência

Atropelo da ciência

Tijolo do monjolo

Monjolo da moeda

Um passo antes da queda

Moeda do medonho

Sim, a vida é sonho

E eu espreguiço

 

Acordo na rede com sede de poesia

Entendam minha triste caligrafia

Eu mordo cada um dos meus sentidos

Não dou ouvidos a bombardeios

Acredito em abóbodas celestes

E aí estava eu achando que

Chegando aos sessenta

A nau feita de junco junto me levaria

Na melhor companhia

 

Mas passou o azul, o vermelho e a tristeza

E eu seco a boa mesa, a boa amplidão da caatinga

Na água limpa da chapada Diamantina

E vejo São Francisco de Assis

Com um prego cravado na mão

A conduzir seus bichos pelo sertão

A conversar com os girassóis

Sóis postos na terra

Na serra que ele agora desce

Com o coração que padece

Pela nossa pandemia

 

E estava eu achando

Que havia um porto seguro

Um pão com manteiga

Uma rabada com agrião

Bem ao alcance da mão

No entanto o mundo se enche demais

O que está à frente resulta

Do que fizemos lá atrás

O ser humano, definitivamente, não é capaz...

 

Ricardo Soares, dezembro de 2020, final em 30-12

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