A PESTE DE CAMUS E A PESTE BOVINA

 



(Republicação da crônica do DOM TOTAL. (clique aqui)

    Há pouco mais de dois meses o ex-jogador Raí, conhecido dos franceses, publicou no Le Monde um artigo que comparava de certa forma o enredo do livro A peste, de Albert Camus, à peste que nos assola, tanto no sentido da doença em si como do desgoverno Bolsonaro, que nos atinge e machuca todos os dias, demolindo nossas esperanças de sairmos dos surtos com um mínimo de saúde física e mental.

Sem deixar Raí para escanteio eu volto ao tema e ao livro de Camus para reiterar a importância, inclusive premonitória, desse clássico publicado no longínquo 1947 do pós Segunda Guerra e influenciado por outro clássico sobre o tema, escrito por Daniel Defoe, Um diário do ano da peste. Grandes escritores são assim. Atemporais, proféticos, premonitórios.

Os dilemas do doutor Rieux, protagonista de A peste, são idênticos aos dos médicos atuais que lidam com a Covid, seja por estarem expostos ao contágio ou por terem que lidar com as pessoas que devem ficar separadas ou são separadas para sempre dos seus entes queridos pela "indesejada das gentes". Então vem uma entre tantas reflexões úteis contidas no livro como "as pessoas cansam-se da piedade quando a piedade é inútil". Diante do pesadelo bolsonarista, isso parece uma verdade cimentada em nossos corações e mentes.

A peste bovina que imbecilizou o gado que votou no genocida e indignou o Raí no artigo francês segue firme e forte apesar de alguns percalços na imagem do desgoverno. Mas, segue fazendo com que todos se sintam como passageiros de um navio encalhado entre árvores, observado por saguis, saruês e quatis que parecem indiferentes ao tempo que escorre ao redor do navio. É um percalço naufragado no percalço, se é que me faço entender.

Exagero ou não, é difícil abandonar a sensação de que somos sobreviventes, o que dá muita consistência ao que o padre Paneloux reflete em A peste sobre a doença fatal e a fé. E aí diz Camus, definitivo: "Mas que porcaria de doença. Até os que não a apanham parecem traze-la no coração".

Se a santidade "é um conjunto de hábitos", como também diz Camus em A peste, muitos de nós, a essa altura, poderíamos estar sendo submetidos a processos de canonização. Mas a raiva nos impede de sermos santos. Transformamos "a peste" em "a raiva" diante de tantos absurdos, desmandos, retrocessos em todos os segmentos da civilidade. Meio ambiente, economia, humanismo, cultura, bons usos e bons costumes atacados todos os dias pela peste bovina embutida nos bolsominions.

A inquietação maior que parece nos afligir (como na Oran, do livro de Camus) é saber como será a vida depois que essa nossa peste política e sanitária se esvair em lembranças ruins. Se é que vão se esvair assim tão fácil. O que não desejo é a espera inútil. Aquela que de tanto esperar arrefece a esperança. E assim fecho as linhas sobre a peste de Camus e a peste bovina com uma frase demolidora do escritor franco- argelino: "Mas de tanto esperar, ninguém mais espera. E a nossa cidade inteira vivia sem futuro". Me recuso a viver assim. Num país sem futuro que deseja breve que os momentos que vivemos transformem-se apenas em triste passado.

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