A SAGA DE MACILENTO

 


Bom, agora que os prêmios literários referentes a 2020 foram conferidos a quem de direito - não, eu não concorri e se tivesse não quer dizer que teria chances diante de temporada tão produtiva- eu volto a modestamente "mascatear" meu mais recente romance que não pode ser lançado presencialmente e nem decentemente divulgado por conta da pandemia. É um relato que passeia entre o cenário da poesia marginal brasileira- e outros tantos -  do fim dos anos 70 e todos os seus afluentes. Dentre eles um personagem aqui destacado. Macilento. Que tipo!e a quem interessar possa o livro segue a venda aqui. Só clicar em cima .



Capítulo 136 de "Devo a eles um romance".

 

Nesses dias que correm, nessa história que corre para tantos lados eu vi Macilento mudar de calçada, um pouco à minha frente, só para não ter que me cumprimentar. Não fiquei ofendido com o gesto mas achei curioso perceber que depois de tantos anos Macilento parece me desprezar tanto quanto eu a ele.

Macilento dá sentido pleno, dá significado à palavra “desprezível”. É dos mais desprezíveis seres humanos que já conheci não apenas no sentido genérico mas no específico, no sentido profissional da palavra. Como eu ele se tornou um profissional de comunicação. Teve muito mais destaque do que eu não apenas por ser melhor político, mas por dominar perfeitamente a arte de bajular sem parecer que está bajulando.

Tornou-se ainda estudante de jornalismo confidente e íntimo de um dono de grande jornal e ao amealhar plena confiança de seu patrão-amigo galgou postos e poder exercendo sua macilenta autoridade através de normas, decálogos e regras quase incompreensíveis a quem era do ramo. Ele “falava” para os tecnocratas da notícia que pouco a pouco formava, ou melhor, deformava. Macilento aliás tem o mérito de ser um dos destruidores do ramo e é tão hábil que sendo um destruidor passa-se por um construtor.

O apelido “Macilento” que lhe pespego nessa narrativa não é mera maldade. Macilento tem a pele macilenta, uma sempre jocosa expressão de lagarto  de óculos cujos olhos se movimentam ligeiros em direção ao seu alvo e um apetite de dragão de Komodo por bons cargos e salários. Sua estampa de pele macerada e macilenta lhe dá ares reptilianos e sempre achei que fosse ver um dia Macilento colocar uma língua bifurcada para fora da boca enquanto falava. Macilento definitivamente parecia um grande lagarto albino.

 A essa altura da vida, pós-infartado e tudo mais, deveria ser mais tolerante com os macilentos da vida, mas ainda não consigo. Desprezo Macilento há tanto tempo que agora quase me sinto honrado quando percebo que ele me despreza na mesma proporção e acho que também há muito tempo. Pude perceber isso quando ele mudou de calçada para não ter que me cumprimentar.

Uma das primeiras más impressões que tenho de Macilento com sua voz pastosa de sibilar arrogante foi em uma reunião num auditório do jornal onde ele trabalhava e já ocupava cargo importante em meados dos anos 80. Macilento e um outro seu comparsa reuniram naquela tarde uma porção de candidatos a resenhistas literários e passaram a explanar as regras que deveríamos seguir caso fossemos aprovados por ele e sua trupe de ungidos. As regras eram absurdas e descabidas, mas isso não é nada comparado ao que vem a seguir. Quando eu tive a ousadia de lhe perguntar quanto cada colaborador ganharia por resenha aprovada Macilento me lançou um terrível e macilento olhar de desprezo do alto de sua aparência de lagarto glacial. E respondeu, azedo:

 — Meu caro, as resenhas tem pagamento simbólico porque escrever para esse espaço é estar em uma vitrine!

O pagamento simbólico a que Macilento se referia não pagava uma passagem de ida e volta do Metro e então, estupefato, respondi:

 — Se eu quisesse escrever para uma vitrine aprendia melhor inglês ou francês e ia tentar o New York Times ou o Le Monde.

Dito isso levantei-me e fui embora junto com o solerte escritor Reinaldo Moraes para nunca mais pensar em resenhar ou trabalhar para um jornal que tinha Macilento como uma das suas estrelas. Muito embora, repito, Macilento tenha sido sempre muito mais importante do que eu pelos valores vigentes tenho imensa alegria em dizer que cavei meu próprio espaço independente de figuras nefastas como ele hoje um quase singelo senhor branquelo ocupado em lustrar o seu vasto ego fazendo suspirar mocinhas mais novas do que ele que o seguem, sem futuro, como a uma novela mexicana.

Depois desse episódio dos resenhistas estive algumas poucas vezes com Macilento durante minha vida profissional e a cada novo encontro, mesmo na casa de amigos comuns, sempre aumentava meu desprezo por Macilento. Mas por que me ocupo de tão triste figura nesse extenso relato, nesse livro que é meu e não dele? Muito simples. Há uma certa máxima, embutida em outros conceitos éticos, que dá conta que um amigo de nosso amigo não pode ser nosso inimigo. Macilento teria ajudado, teria sido camarada em certa época com meu amigo Alfa quando ele foi trabalhar em Brasília na sucursal do jornal que Macilento ajudava a destruir. Alfa ficou grato a ele por vários motivos e parece até que se tornou próximo, chegou a frequentar a casa de Macilento quando voltou de Brasília pra São Paulo.

Macilento nunca deu o menor valor ao trabalho poético de Alfa e muito menos ao trabalho dos amigos do Alfa, no caso nós. Mas Alfa me garante que ele não é de todo mau e que eu deveria ter um pouco de boa vontade com Macilento. Mas perdão Deus, perdão Alfa, perdão São Francisco de Assis... eu não consigo. Cada vez que lembro da expressão macilenta de Macilento mais eu o associo ao que de pior houve na nossa mídia nativa entre os meados dos anos 80 e começo dos 90. 


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