Vendo crianças resolveu ser eterno

 



VENDO CRIANÇAS RESOLVEU SER ETERNO


    Já no ocaso dos seus dias, quando suas costas rangiam e as frieiras brotavam,ele deu  de atravessar a rua sem cuidado, defronte à sua casa amarela, e todo fim de tarde sentava no maltratado banco da praça para ver as crianças brincarem.

    Era apenas um sereno e plácido exercício de contemplação sem maiores motivações ou consequências. Ele ouvia os sorrisos e gritinhos da criançada e sequer lembrava de sua própria infância. Estava ali para vivenciar e observar a infância alheia, assim, todo dia, a cristalizar o tempo e dar vazão às evidências de que seu tempo já havia passado.
    Não, ele não contava passarinhos, nem plantas e nem árvores. Contava crianças e através delas vivia tudo de novo, abraçava um passado que sequer tinha vivido, apenas intuído. Criança de todo tipo : ruivas, negras, loiras, morenas, asiáticas, a falar a língua em comum da infância que é essa sinfonia de palavras estridentes  e desconexas no fundo apenas uma celebração da alegria.
    As crianças sequer o notavam ou notavam muito pouco. A velhice nos deixa invisíveis. Mas ele ali estava todo dia, em todo fim de tarde e não se importava com pôr de sol ou ameaça de garoa. Navegava apenas na tênue sensação de um resto de vida boa a contemplar crianças que se espalhavam no jardim da praça.
    Nem ele , nem ninguém sabe por quanto tempo passou por essa faina. Mas contemplou seus dedos, seus pés cascudos, seu umbigo feio e os pelos grisalhos de sua barriga. Tinha uma serra linda passando no fundo dele mesmo. E também tinha um vale, um desfiladeiro, um rio que só nascia e ninguém sabia para onde ia.
    As crianças, um dia enfim, o rodearam,podaram os seus galhos que eram muitos como muitos eram os seus anos.E aí houve mudança de planos. Feliz, inexato, fraterno ele resolveu ali na praça simplesmente ser eterno.

Ricardo Soares, madrugada de 27/09/2023 

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