Ninhos de baratas e marquises do anonimato

 


Ninhos de baratas e marquises do anonimato

  

Um dia não estarei mais por aqui/ e não mais abrirei a porta para você entrar / e não passarei pra você café com sequilhos/ e não falarei mais sobre os baixios da Aclimação/os passantes da rua do Gasômetro/ os comerciantes da Rangel Pestana

 

Um dia não estarei mais por aqui/ e mal saberei o destino que terão os meus cachecóis / os amarelados bilhetes de amor dos anos setenta/ o canhoto de ingressos de shows e peças de teatro/ Gota d’água/ Antígona/ Rasga Coração/ Macunaíma/ O Santo Inquérito/ Teledeum / O Homem e o Cavalo/ A Aurora da minha vida

 

Um dia não estarei mais por aqui / e os trecos que escrevi serão molambos convertidos em ninhos de baratas/ garatujas inúteis num par de palavras perdidas/as canetas antigas, todas elas, com tintas ressecadas/ engasgadas por aquilo que não puderam escrever pois eu tive preguiça

 

Um dia não estarei mais por aqui / e o trânsito seguirá congestionado/ o calor aumentando / o ar condicionado rareando e os poetas se refugiando nas marquises do anonimato/cientes de suas inutilidades/

 

Um dia não estarei mais aqui/ haverá escuro no meu pranto/ haverá ressonâncias esquisitas nos meus risos/ faltarão lenços umedecidos e barbantes/ será inútil embrulhar pacotes para o futuro

 

Um dia não estarei mais aqui/ não haverá testamento e nem legado/ e como cremado quero ser/não haverá lapides e nem rosas com espinhos na minha tumba

 

Um dia não estarei mais aqui/ num mundo onde a palavra verdadeira rareia e fica rala/ num mundo onde a maioria cala/ e a caravana das aparências é o que conta

 

Um dia não estarei mais aqui / porque embarquei no bonde derradeiro/ uma fração de mim querendo ser um inteiro/mercador de varejos/ mascate de utopias/ ex-construtor de falidas fantasias

 

 

Ricardo Soares, 9 de novembro de 2023, 16 e 39, Granja Viana

 

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