Nem todo mundo pode ser sua tia

               

                 

Nem todo mundo pode ser sua tia

        Tia na verdade é um estado de espírito. Muito além do vínculo de sangue , tia é uma ligação sensorial, um elo de afinidades afetivas, alguém , geralmente mais velha, que nos abraça por dentro e por fora e nos leva a reminiscências queridas que os anos não trazem mais.  Quando tudo isso acontece junto uma tia de verdade que a gente perde deixa,  obviamente, uma lacuna difícil de ser preenchida.

        Vocês me desculpem ser autorreferente , mas creio estar falando em nome de muitos. E com a negação do velho epíteto de que o tempo é senhor da razão. É não. O tempo sedimenta , mas não cura feridas. O que pode fazer é cauteriza-las um pouco.

        Dei voltas para falar de uma tia especifica. A minha derradeira tia em todos os sentidos das palavras. Cordão umbilical que restava do meu passado materno. A tia Ottilia, a Tilinha, a Tila, a Cocoreka ou qualquer apelido com os quais seus 6 sobrinhos a designavam e ela aceitava a todos ( os apelidos e os sobrinhos e sobrinhas) com o mesmo sorriso terno no rosto que tão bem ilustra essa foto.

        A foto , no caso, foi tirada há exato um ano quando comemoramos o seu aniversário de 95 em São Carlos para onde ela mudaria alguns dias depois. Seguimos um plano traçado pelos sobrinhos  para que ela estivesse mais perto da maior parte da família que lá vive. Em São Paulo ela estava fundamentalmente só. O mais próximo era eu que morava a 30 kms ( e hora e meia ) dela em virtude do trânsito cada vez mais apocalíptico.

        A jornada são-carlense  durou pouco. Oito meses depois dessa foto os disjuntores da tia foram desligando e ela entrou numa jornada rumo a finitude com reta final imerecidamente dolorosa. Faço licença para o registro definitivamente pessoal em homenagem às Ottilias do mundo, às nossas Ottilias. No caso da minha era uma unanimidade. Serena, reservada , contida até em excesso levou uma vida discreta, solteira e religiosa. Conseguiu a façanha de ser querida de todas as minhas ex- companheiras que lamentaram, cada qual a seu jeito, a partida da tia.

        Reitero aqui que tia é uma condição única. Há tias que não tem laços de sangue conosco e são muito tias. E há tias que sendo biologicamente tias nossas não nos dizem nada. Eu perdi a tia que me dizia tudo. Do jeito dela , of course. Lógico que lamento sim não ter feito mais por ela. Mas tentei me fazer presente nos 65 anos que com ela convivi. É o primeiro aniversário dela  que “comemoro” sem ela por perto. Não creio em reencarnação, vida eterna e nem nada disso. Mas, creio na força do amor, com o perdão do lugar comum.

        Lamento não ter perguntado mais detalhes para ela de acontecimentos significativos de sua trajetória pessoal e familiar . Como o dia em que ela saiu de um concerto do Teatro Municipal de São Paulo em 1945 para comemorar o fim da Segunda Guerra. Que orquestra estava tocando ? que músicas estavam sendo executadas ? a tia estava lá e nunca perguntei mais detalhes. Quanto ao resto é um resto enorme que fica. Caleidoscópio de lembranças que me confortam nos 96 anos que ela não está fazendo hoje ao vivo. Me pediu por chamada de vídeo – quando eu estava em Governador Valadares - que eu estivesse presente nos 96. Não deu né tia ? Faltou pouco. Faltou um pouco mais ainda para os seus 100 anos para os quais você fazia planos.

        Como dizem os espíritas a tia Ottilia não está mais no plano terrestre e gente como ela faz cada vez mais falta. Gente do paz , harmonia e amor. No que me tange, no que tange aos meus, seguirá viva e bem disposta. Com a mesa posta hoje, no seu aniversário, e  para sempre.

 

Ricardo Soares, 23/11/2024, 13 e 21

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