ACORDA FILHO

 


ACORDA FILHO

 

         Lá vem melodrama. Assistindo numa plataforma digital a um filme italiano que homenageia o neorrealismo reparo na singela cena da mãe acordando seus filhos para as missões/lições do dia. Como não se sensibilizar com essa cena tão pueril, mas assaz significativa, que remonta ao que há de melhor em açúcar e afeto na relação entre mães e seus filhos?

No meu caso o “acorda filho” era uma  função matinal do meu falecidíssimo e queridíssimo pai que muitas vezes também nos colocava na cama à noite, ajeitando as cobertas e lençóis. É das lembranças mais aconchegantes que tenho da minha infância querida que os anos não trazem mais naquele modesto sobrado da modesta Vila Paulicéia em São Bernardo do Campo.

Meu pai poderia dizer “acorda filho que os  dragões do mundo estão botando fogo pelas ventas” ou “acorda filho que os lobos maus estão a postos” ou ainda “acorda filho que o tempo passa pela janela da vida”. Mas não colocava complemento algum na frase “acorda filho” e isso  herdei quando muitos anos depois repetia a frase para o meu próprio filho sem assustá-lo ou adverti-lo sobre os perigos do mundo. O “acorda filho” do meu pai  e mesmo o meu pretendia, inconscientemente talvez, ser um abraço vocal de conforto e relativa sabedoria num mundo desde sempre perigoso e conflagrado.

Hoje – agora sim, melodrama- vivo já há alguns anos sozinho e não tenho como falar o tal “acorda filho” posto que ele está distante e nem receber o tal “acorda filho” que muitas vezes seria poderia  ser alento matinal para criar coragem assim que saio da cama. E fico a ruminar pensamentos de que talvez falte no mundo contemporâneo o tal gesto – paterno ou materno – do “acorda filho” até porque muitas vezes filhos e filhas já estão acordados ou pouco pregaram os olhos que ficam na verdade colado nas telas virtuais. Acordem pais. Acordem filhos.

 

Ricardo Soares – 2 de dezembro de 2024- 7 e 38 – Granja Viana

          

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