TODOS OS CÔMODOS ESTAVAM OCUPADOS (2)

  

(PARTE 2 DE  "TODOS OS CÔMODOS ESTAVAM OCUPADOS" A SAGA DE DARCY MAÍRA)

     Sim, já haviam os péssimos poetas que insistiam em vender horrendos versos em edições mimeografadas nos cafés e bares do Bexiga. Mas é bom lembrar que havia pérolas entre os porcos. Mas, não estou aqui para ser crítico literário daquele movimento. Ou será que estou? Só sei que pouco a pouco fui me tornando o embaixador desse poetariado todo o que acabou atraindo toda sorte de bajuladores  que queriam estar em alta conta comigo. Logo também arrisquei meus versos e descobri que mais importante do que fazer poesia era necessário fazer “marketing poético”.

         Nos primeiros anos de São Paulo ganhei dinheiro com corretagem de imóveis vendendo terrenos e sobrados modestos sem escrituras numa região erma da zona leste que hoje é densamente povoada. Ali me fixei com fama e extravagancia e logo comprei um reluzente cupê vermelho que eu dirigi com ternos do mesmo tom. Criei um personagem para mim mesmo  e vivia contando por aí que era um “ex- favelado” caprichando na pronuncia do “ex”.

         Meus saraus escalafobéticos com luzes estroboscópicas passaram a chamar muita atenção e também com eles ganhei dinheiro , misturando para os meus clientes doses de uísques genuínos com uísques paraguaios e aí por diante. Não cai nas graças de certa mídia da moda e pseudo-elegante, não fui o criador do festejado “Madame Satã” mas isso , na real, não fez a menor falta na minha conta bancária porque pouco a pouco se consolidava a minha fama de “sentinela dos malditos” mesmo que a maioria deles sem malditos fossem.

         Cheguei à cidade de São Paulo , se a memória não me falha , no final de 1976, mas pode ser começo de 1977 ou até 1978 quando um jornalzinho que circulava no metrô de São Paulo dava notícias hibridas das atividades de um grupo de poesia pelo qual me interessei. Acho que ninguém lia os textos poéticos que aqueles meninos difundiam naquele jornal do metrô. No entanto eu me interessava em conhecer aqueles autores sonhadores, samambaias perdidas em jardins cheios de espinhos.

      Naquela época o poeta Vinicius de Moraes ainda era vivo e eu lembro , comovido, de ter lhe apertado a mão em um comício em São Bernardo do Campo. Também era vivo o maior dramaturgo vivo,( e ora morto) o esculachado Plinio Marcos que muitas vezes vi mascateando sua escrita pelas esquinas paulistanas em altas horas da noite .

      Viva era a ditadura, as botas dos milicos, os camburões escuros, as perseguições , o sangue, o suor e a porrada. Mas eu carnavalizava tudo , ou tentava, com meus carros ,sapatos, drinks e ternos coloridos  e acreditando no óbvio  mote-clichê de que a noite sempre fora uma criança.  Apesar da repressão ainda vigente pelo menos no meu entorno se respirava certa liberdade sexual e eu aproveitei. Devorei homens, mulheres, eunucos e Pernambucos e quanto mais devorava mais os queria com véus e alegoria.

         Embora tenha caído na boca da poesia que se fazia naquele tempo em São Paulo confesso que o que mais me magnetizava e assombrava  na cidade eram aqueles dois edifícios no centro da cidade que arderam em chamas  em 1972 e 1974 :o Andraus e o Joelma .

     Lembro de ter acompanhado , estarrecido, todo o desenrolar dos incêndios pela televisão e das primeiras coisas que fiz quando cheguei em Sp foi ficar abaixo desses prédios olhando para cima tentando reviver e reavivar tanto horror e iniquidade. Era, de alguma forma, o jeito mórbido de tentar entender e me relacionar com a cidade na qual queria viver e chamar de minha.

         Conhecer seus incêndios recentes era a minha grotesca forma de mergulhar nas entranhas flamejantes da maior cidade do Brasil. Agora, quando chego aqui, passando pelo pico do Jaraguá, no lado direito da estrada, imagino que talvez tivesse sido mais fácil tentar decifrar a cidade subindo ali no pico com suas antenas do que ficar parado abaixo do Andraus e do Joelma . Mas foi o meu modo de ver as coisas.

         "O que vai sair de tudo isso ?" pensava eu na ocasião e , confesso, ainda penso hoje. O que pode , afinal, sair do cruzamento de um funcionário do cartório de notas de Sobral com uma professorinha cabeçudinha de Tianguá ? o que pode sair desse sujeito largado de pai , mãe , sete irmãos e irmãs que quando partiu não olhou para trás e que quando triunfou em Sp não mandou um centavo para os seus ?

         É que os meus não tinham poesia nenhuma, abrutalhados em deveres, dízimos e religião. Uma chatura imensa cheia de vela, proibição, carnês do Baú da Felicidade e novelas chocas na televisão. Vida miserável onde não tinha sequer cachaças e xaxados que eram fartos entre os vizinhos.

         Meu pai era um burocrata vassalo e contido de calças de tergal com cinto preto e camisas de mangas compridas mesmo com aquele calor medonho que afligia os nossos dias. Sujeito insosso e inodoro sempre me causou uma repulsa infinita essa omissão e covardia de meu pai diante dos poderosos locais.

      O que poderia sair de tudo isso ? Mas saiu e vim para Sp sem nem imaginar que vinha caçar convívio com a poesia. Embora eu intuía e a única coisa certa é que cheguei e me plantei logo de cara num quarto mofado num casarão do Brás caindo aos pedaços e com cheiro de creolina  em todos os cômodos.

                             ( em breve  a parte 3 e derradeira)

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