TODOS OS CÔMODOS ESTAVAM OCUPADOS (3) - FINAL

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    Todos os cômodos estavam ocupados e sei lá porque eu achei que só  meu quarto mofado cheirava e exalava abacaxi. Eu era uma fruta no meio de putas e logo comecei a ajudar aquela pequena comunidade com meus muitos atributos naturais : bordar, tricotar, cozinhar e fazer boquetes. Logo fiquei popular e ganhei o apelido de “Fada”.

         O que mais me ultrajava ali não era o barulho , o pouco espaço e comida mas o (uso) banheiro coletivo sempre impregnado de um bodum ancestral que me revirava o estômago. Meu sonho de ir embora do cortiço era principalmente para nunca mais nem ver , nem entrar e nem usar um banheiro coletivo .

         Por achar tudo no casarão tão imundo é que das primeiras coisas que fiz ali foi limpar freneticamente portas e janelas e varri o chão o mais que eu podia e eles ficavam olhando para mim sem entender porque tanto eu limpava já que tudo se sujava com tanto velho e criança porca inclusive cagando fora do vaso.

         Na verdade, eu limpava, mas não era santo. Tinha uns velhos ali que eu queria era moer na chibata. Catarrentos, peidorreiros de unhas compridas e imundas e um deles inclusive ainda mascava um fumo barato  o dia inteiro e ficava cuspindo  nos velhos ladrilhos vermelhos daquele arremedo de cozinha que ainda resistia.

         Por falar nisso eu era sim um resistente no meio daquele caos e tentava me organizar com trabalho e disciplina para por ordem nos meus próprios pensamentos e tentar ter foco para sair dali o mais rápido possível. Mas eu estava em São Paulo e tinha que me conformar com isso para não ficar avexado, diminuído , desestimulado. Estava aqui e um dos primeiros lugares que conheci, antes mesmo do Andraus e do Joelma, foi o Pátio do Colégio onde os jesuítas fundaram a “cidadona” e por onde começou toda essa bagunça que, no fundo, eu gosto.

    Às vezes eu sentava horas em uma pedra diante do prédio do  Pátio do Colégio e ficava tentando imaginar como era a rotina ali nos primórdios da cidade. Como vocês já perceberam sou muito dado ao divagações e adoro abrir portas.

         No meio do caos que eu vivia naqueles primeiros tempos de São Paulo eu adorava ter um vaso de flores em cima da mesa escangalhada da sala principal do casarão. Tive que dar porrada em muita gente para que respeitassem aquele meu espaço , meu vaso sobre a mesa zoada.

Minhas lindas flores sempre roubadas, lógico, de canteiros alheios, parques, exposições e até cemitérios. Flores compradas ali não teriam a menor graça e eu muito menos teria dinheiro para compra-las. Depois que finalmente aquele espaço foi conquistado e preservado eu trocava, dia sim, dia não, a água do vaso e procurava sempre alternar as cores das flores: vermelhas, amarelas, roxas, e alaranjadas, principalmente.

Com o tempo os “inquilinos” do local entenderam o espírito da coisa e até começaram a contribuir trazendo também seus exemplares de flores roubadas. Eu queria um jardim ali não só para mim e o conquistei na porrada. Tê-lo ali foi como uma espécie de poesia, todo dia, para todo mundo. Lógico que não é nenhuma grande novidade, mas fui descobrindo, dia a dia, que no meio de tanto entulho, sujeira, tapumes- não só no casarão, mas na cidade inteira – havia poesia.

Poesia entre as gravatas, o fumacê, o caldo de cana, a Bolsa de Valores, o bife a cavalo, os engraxates, os taxistas malufistas e os mercadores de bíblias. A poesia estava em tudo. Até nas entranhas. E fui descobrindo que minha vocação era divulga-la, dar realce e relevância a ela para que conseguisse dar alívio e alento a tantos transeuntes. Mesmo que fosse para dar com a porta na cara que é justamente o título do poema que concebi na ocasião dessa reflexão :

Porta na cara

Agora eu sei que não é preciso saber onde fica o sul no mapa/ e nem quais são os pontos cardeais/ e nem preciso saber onde ficam os picos mais altos do mundo ou os rios mais caudalosos/  não preciso saber sobre o núcleo dos átomos e nem sobre a migração das formigas e nem fazer ideia de quem ganhou a série b do campeonato capixaba de futebol

Há muitas coisas que não preciso saber pra continuar a viver/ mas , talvez, seria aconselhável que eu soubesse/ afinal se eu sei hoje o que me é sabido não teria procurado tanto/ não teria ido a cantos em que não fui bem recebido

A poesia latia na calçada e eu não a chutava e nem a prendia na coleira. Poesia brota até na poeira das joias e não só na poeira dos livros.

Nesses meus primeiros tempos de Sp eu tinha muita inveja dos motoristas de ônibus. Especialmente daqueles que rodavam muito , rodavam para longe, faziam grandes trajetos como Penha- Lapa ou Sacomã -Vila Gomes, Ipiranga-Rio Pequeno e por aí vai.

Eles podiam andar muito e ver muito .Paisagens, lugares e pessoas de todos os jeitos e formas , todos os dias. E daí se havia trânsito ou caos? O que importava era a diversidade. Poesia em tudo, e poesia mesmo que bruta e concreta saindo pelos bueiros.

E assim ,observando tudo isso, desde o início já tentei rabiscar meus primeiros versos , mostrando para os meus vizinhos lumpens e degredados da cidade grande. Eles me devolviam olhares aparvalhados  e alguns poucos, sem saber o que deviam dizer , apenas balançavam as cabeças. Em contrapartida as flores dos vasos ficavam tão satisfeitas que algumas vezes até davam vida a novos brotos como se não tivessem sido colhidas.

Naquele tempo eu não decorava e nem queria saber o nome dos presidentes da República e nem dos ministros. Só decorava e aprendia os nomes dos poetas. Tanto os que eu convivia como os que eu “aprendia” e gostava : Drummond, Bandeira, Gullar, Quintana, Castro Alves, Jorge de Lima, Vinicius e Cruz e Souza, Oswald de Andrade e Álvares de Azevedo, Fernando Pessoa e Mário Sá Carneiro.

Alguns poemas eu até decorava e declamava sem jeito, achando que estava abafando. Me compadeci e sofri quando soube da história da morte num naufrágio do poeta Gonçalves Dias justo quando voltava para casa. Alguns poetas gostam de morrer de forma trágica  mas isso não lhes faz bem para a poesia pois quando voltam encarnados em médiuns sempre acabam por produzir no pós vida poemas de pior qualidade do que quando estavam vivos.

Eu gostaria de incorporar poetas e poesias. Ser assim um longo poema itinerante ou uma pequetita poesia satírica e espirituosa a tirar risos dos rostos dos leitores pelos metrôs do velho e novo mundo. Ou, para ser mais sucinto e direto : quando eu morrer quero virar uma poesia a ser derramada dos altos de prédios sobre a cidade de São Paulo como fez o grupo Poetasia nos finais dos anos 70, começo dos 80.

( talvez siga um dia a partir daí...na verdade seguiu , mas meu computador deletou...)

 

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