O URSO
O URSO
Sob
o corpo do enorme urso foi colocada uma imensa prancha de madeira resistente -
feita de aroeira, jacarandá, carvalho, não sei – e nas quatro extremidades
dessa prancha foram instaladas rodas toscas de um redondo primitivo e toda essa
engenhoca foi puxada por uma porção de nós subindo ladeiras íngremes e
planícies lamacentas até depositarmos , horas depois, a carga na “porta” da
aldeia dos nossos inimigos para provarmos do que somos capazes.
Não
me dou conta se na época desse sucedido os animais ainda falavam, mas sei que
aquele enorme urso depositado na porta da aldeia nossa desafeta causou uma
impressão avassaladora. De longe o enorme urso parecia um monturo cagado por Deus e poucos se atreveram
a chegar perto do animalzão que começava a feder.
Nossos
inimigos foram chegando devagar carregando tochas com cheiro adocicado para
disfarçar o bodum da putrefação. Quando os primeiros guerreiros chegaram ao
enorme entulho de carne em decomposição notaram que o urso já estava sem os
olhos que tanto lhe guiaram nas caças e acasalamentos. Não havia mais nada a fazer a não ser
incendiar o que restava daquela montanha de carne e planejar uma ação de
vingança com quem havia perpetrado aquela desfaçatez.
O
que um urso morto pode fazer a não ser incomodar com sua carcaça fedorenta?
Mas, para os inimigos, aquela desfeita incomodava muito mais. Era uma afronta
quase inaceitável que resistia ao frio que fazia e a todos por dentro
apodrecia. Tribos rivais deveriam respeitar limites e ali claramente os limites
não haviam sido respeitados.
Depois
que fizemos essa afronta voltamos muitas léguas e nos escondemos numa espécie
de vale onde o clima estava mais ameno e salubre e podíamos postar vigias no
alto de alguns morretes caso os nossos inimigos resolvessem ir ao nosso encalço
para a vingança que esperávamos.
De
onde somos eu exatamente não sei. Somos nômades, viemos de muitos lugares e
vamos para tantos outros. Sei que minhas mães vieram de uns cantos e meus pais
de outros. Somos todos feitos de muitos espermas e placentas. Nosso povo tudo
divide e não só no sexo e no amor difundimos o preceito do “ninguém é de ninguém,
na vida tudo passa”.
Onde
hoje vivemos já foi um lugar fértil, cheio de água limpa e árvores frutíferas e
pouco a pouco tudo foi se degradando na sanha absoluta da busca pela riqueza. Destruíram,
aterraram, podaram, detonaram e eis que o lugar fértil foi é virando um vale de
lágrimas frio e tortuoso e todo ele foi sendo depois disputado por tribos tão nômades
e ferozes como as nossas.
Não
soubemos preservar muito bem os relatos e lembranças de nossas vidas primitivas,
anteriores às nossas. Não temos tradição oral e nem escrita de forma que nunca
se sabe o que é lenda e o que é verdade. E assim foi caminhando o que conhecíamos
como nossa humanidade até a um ponto de não retorno onde as ameaças à nossa
volta careciam de reação imediata e exemplar.
E assim matamos o urso. E assim o deixamos na porta dos nossos inimigos.
Não
sabemos – e nem eles, os inimigos – quem foi que chegou primeiro e aos montes.
Se os ursos, se os coiotes ou os cachorros selvagens que não comiam nas nossas
mãos. Antes o contrário. Se déssemos as mãos a eles nós as perderíamos. Eram
agressivos, nervosos, nada amistosos.
Ano
a ano fomos nos acostumando – e eles também, os inimigos – com os ataques das
feras. Nos habituamos ao cerco, ao medo, a incerteza e as noites mal dormidas quando
muitas vezes nossas barracas eram destruídas pelas feras, especialmente quando
a fome delas apertava. Perdemos muitos dos nossos e nossos inimigos também.
Nesse
tempo eram faladas muitas línguas de forma que nós e os inimigos não nos
entendíamos. Não havia possibilidade de conversa, só de agressão carnívora e
corriqueira até porque era carne que comíamos apenas. Não havia terra fértil
pra cultivo de nada. Nem frutas, nem legumes e verduras. Assim disputávamos ferozmente os espaços de
caça e nos caçávamos uns aos outros.
Ao
redor dessas caças fomos – nós e eles- criando rituais que pouco a pouco
percebemos serem religiosos. Estávamos orando por deuses antropomorfos e
ferozes, alguns com patas de cabra e cabeças de macacos que aliás foram dos
bichos que mais sumiram por aqui e por todos os cantos.
Haveria
a essa altura algum lugar onde não fosse tão frio? Nós não sabíamos e eles,
nossos inimigos, também não. Fisicamente, é bom que se lembre, nós e eles
tínhamos vagas semelhanças físicas, vastas emoções e pensamentos imperfeitos e
mal colocados. O raciocínio não ia muito além do instinto violento, a brisa
fétida da sobrevivência pairando sobre tudo e todos.
Não
existiam mais aeroplanos e aeronaves de forma que não dava para espiar de cima
o que havia adiante. Até onde sabíamos era gelo, mar congelado e descongelado,
pequenas erupções gasosas, cheiros nauseabundos que vinham dos confins de uma
terra desgastada, lá no fundo do mundo.
Soubemos
de histórias tristes – dos nossos e dos deles- onde crianças famintas roeram os
ossos dos próprios antepassados e desenterraram restos para usar em sopas
malignas que desarranjavam todos os intestinos. Assim tinha época que tudo era
uma longa trilha de merda e de gelo com os animais peçonhentos à nossa volta
querendo predar a repugnância restante.
Naquela
ocasião, quando deixamos o urso morto na porta da aldeia deles, já não se fazia
uso de calendários ou relógios. Assim não sabíamos em que mês, ano ou dia estávamos.
Sobreviver era a batalha diária e nada mais de forma que nem existiam condições
de se desenvolverem laços de afeto ou de família porque, na precisão, um parente
podia ser a refeição do dia.
Mesmo
assim nos reuníamos em grandes grupos e perambulávamos por onde desse. E quando
desse ficávamos mais tempo como agora onde já estamos estacionados há meses,
bem perto dos nossos inimigos. Como eles nos acuavam e – na menor distração-
nos matavam impiedosamente resolvemos mandar o urso enorme de presente de
alerta para eles. Já o achamos morto e não dava pra aproveitar nada. Começava a
feder e que fosse feder lá pra os lados dos nossos inimigos.
Ao
deixarmos o urso ali os assustamos, mas só depois percebemos que cometemos um
erro que também nos prejudicava. Entre nosso ajuntamento e o deles agora havia
o assustador e putrefato urso imenso. E depois dele vinha a aldeia dos nossos
desafetos que tinham acesso ao mar. E nós queríamos esse acesso. Só que os
vapores mortíferos do urso morto acabaram por matar várias baleias encalhadas
logo depois da aldeia deles. Baleias que nos dariam carne e óleo para nossas lamparinas
noturnas e que agora apodreciam o mar deles que também deveria ser o nosso. E o
cheiro nauseabundo intoxicou focas, anchovas, tubarões e leões marinhos. E
entre o urso e eles, entre o urso e nós, haveria de só haver mais dizimação e
loucura. Todos perdemos definitivamente a receita de como começar tudo de novo.
(09-02-25- Ricardo Soares)
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