SENHOR DEUS DOS DESGRAÇADOS
SENHOR DEUS DOS DESGRAÇADOS !
Senhor Deus
dos desgraçados! Tomo do poeta emprestado a evocação antiga para ser mais um
dos muitos que escrevem sobre a ausência do seu santo padre que agora jaz na
sua solidão de cor vermelha em meio a um átrio imenso onde passará tanta gente que
talvez não tenha entendido metade de suas palavras, mas desfilarão diante a
mídia do mundo, a estupefação humana , nossa pequenez mortal que deseja tanta
paz ,mas contempla guerra.
Diante
de um Vaticano e uma religião carcomida talvez você tenha feito, Papa Francisco,
o que foi possível e esse “pequeno possível” fará uma falta imensa seja quem for
seu sucessor. Num mundo carente de sossego e harmonia seu sorriso de padre de
comarca deixará não uma, mas muitas
lacunas. O espírito franciscano que você evocava talvez tenha sido a sua maior
marca, muito além do “é dando que se recebe”. Eu diria , no seu caso, “que perdoando
é que se é perdoado” para que tenhamos a altivez de esperar pela vida eterna como
sabemos que você esperava.
Senhor
Deus dos desgraçados! Tomar emprestada a trágica evocação do poeta pode sim
emprestar a essa (digamos) homenagem um caráter solene e até inadequado, mas
queria ter a habilidade de ir mais além. De escapar da pieguice e resvalar para
o abraço que não tive a sorte de poder lhe dar, mas que muitos deram e
receberam e isso agora basta. Mais que paz os que creem querem ser abraçados.
Querem abraçar. Mais uma vez o “é dando que se recebe”.
A
dimensão do gesto de acolhimento será sua grande falta num mundo de crepúsculos
de chumbo com tanta gente abjeta que não se sentirá constrangida em comparecer
ao seu velório e enterro. Desnecessário dizer que o espetáculo não pode parar.
Ninguém ali vai querer falar dos assassinatos em Gaza, das mortes na Ucrânia e
na Rússia, quando talvez você quisesse justamente tocar nesses “assuntos”.
O
espetáculo midiático pode até tentar expressar a dimensão da dor. Mas, sendo
todos nós ,crédulos ou não, a dimensão do pavor é que se agiganta num mundo
onde pessoas como vosmecê fazem cada vez mais falta nessa carência absurda de
humanismo e solidariedade. Jorge escolheu o nome de Francisco para seu pontificado.
Leva ao pé da letra o “é morrendo que se vive para a vida eterna” que evocava o
santinho de Assis.
Os
cães ladram e a caravana da verdadeira ou falsa fé vai passando. Todos nós
contornamos nossas épocas, nossas finitudes, nossas vãs vontades para tentar
entender o significado disso tudo que só pode ser a sensação de orfandade
planetária. Não, não morreu um santo. Morreu um homem que na sua divina humanidade
tem que tolerar até as homenagens tardias
e a tentativa que farão de construir a sua trajetória pela régua da
hagiografia. Senhor Deus dos desgraçados ! mas o problema é a lacuna que fica,
o medo do futuro logo ali com padres de quermesse e repletos do botox da vaidade
querendo representar a cristandade. Não entenderam nada. Mas, acho que no fundo você também não entendeu.
Mas, Senhor Deus dos desgraçados, como você tentou. E como essa tentativa fará
falta.
Ricardo Soares, 24 de abril de 2025, 3h 58 min
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