o altarzinho da velhice
O ALTARZINHO DA VELHICE
Sim,
já me aconteceu tanta coisa na vida, mas ao contrário do que diz a escritora
Livia Garcia Roza, a velhice não é uma tranquilidade. Ao contrário, é uma constante
espreita de assombros, um bem menor, um susto longe do alumbramento, a certeza
de que o melhor saiu de cena e o futuro nem é uma trilha perigosa em terras vulcânicas
pois sequer é uma trilha. Quanto muito é uma picada entre arbustos espinhosos,
uma caminhada na caatinga da vida que seca.
Uau, dirão os incautos! Mas que visão pessimista.
Pode ser. Mas, como a Livia, tudo isso me faz valorizar cada bom momento atual
que guardo num úmido santuário. Nem é um santuário, é um altar mesmo, um
altarzinho para dizer a verdade. E nele, no seu lado sacro , está, evidente, uma
ou mais imagens de São Francisco de Assis, as recordações de recentes encontros
entre amigos da mesma faixa etária (ou não) que celebram com vinho ( ou não) instantes
felizes num momento em que o planeta se desmancha e fingimos não estar vendo.
Tem coisa que é melhor ignorar mesmo do
que enxergar. Mas, no altarzinho particular de cada um de nós, há que se
colocar também momentos exuberantes como as lembranças dos nossos primeiros
amores, o nosso primeiro sexo, os nossos filhos para quem os tiver, os nossos antepassados
felizes também para quem os tiver. Acompanhados por nossas histórias e memórias
estão no altarzinho nossos refrões e palavras de ordem pela vida afora, as
declarações de amor que fizemos ou esquecemos, o nosso primeiro dia na escola,
nossos primeiros medos, nossas primeiras malícias e astúcias.
Nesse contexto diria eu que é ainda
mais salutar celebrar e colocar no altarzinho momentos felizes e recentes que
são “enxergáveis” logo ali na esquina e não perdidos na poeira dos anos, todas
enevoadas justamente pela passagem do tempo que a tudo nubla. Daí que atravessa teu caminho/altarzinho o
sonho com um ex- amor que aparece no caminho vestida com pijama azul , num ontem
sem conflitos e se junta a isso um sonho feliz de cidade ao percorrer ruas e caminhos
do passado com amigos atuais muito queridos e mais a soma dos afetos culinários
com a lembrança da baiana risonha e querida a lhe mimar com vatapás e moquecas ou a amiga amada
que lhe mima com potinhos de acepipes cada vez que você a visita .
O altarzinho é grande por sorte. Meio
que sincrético como altares budistas ou umbandistas onde lembranças, frutas ,
comidas, cinzas, acalantos e alentos se
misturam . Isso sim devemos valorizar muito, Para amanhecermos ou nos deitarmos
em relativa paz sem preocupações com tosses ou dores nas juntas. A vida nos enferruja
e as lembranças tem que ser bem lubrificadas com boas vibrações para o nosso passado onde éramos felizes e sabíamos. Isso
são nossas histórias e memórias. Nossos caprichos e esculachos. A saudosa gente
do passado de braço dado com aqueles que estão, ainda hoje , do nosso lado. Sem preocupação etária, sem
interesses escusos. Parentes, amigos, amores, cães, gatos e crianças.
Altarzinho da velhice saudável com risos e sem choros.
Ricardo Soares, 29 de junho de
2025, 10 e 40 da matina.
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