DE CARA COM O ESPELHO, 46 ANOS DEPOIS
DE
CARA COM O ESPELHO
Você
está ali, feliz e jovem, dançando com um sorriso no rosto. Ao seu lado, rodopiando,
todos os seus amigos e amigas sorrindo também, felizes e jovens. Cigarros
passam de mão em mão. Os de maconha e os normais e alguns dos seus debruçam-se
numa varanda de um prédio antigo em plena avenida São João. O ano é 1979 e as
notícias são boas apesar dos tempos bicudos.
Você está ali, feliz e jovem, dançando
, inebriado pelo som, por pouca fúria, por fumaça, suor e cerveja. A impressão
é que luzes coloridas se projetam no teto e em seis meses estaremos todos nos
anos 80. Há rumos a serem seguidos, possibilidades, sinais de novos tempos e
você está ali , feliz e jovem , completando vinte anos com seus amigos e amigas
da faculdade bebendo cuba-libre também.
Quarenta e seis anos depois você acorda
no meio da madrugada com essa cena atravessando sua memória ou , sei lá, vai ver
que você acabou de sonhar- recordar dela. Está num escritório bagunçado, cheio
de canetas que não funcionam e livros que não terminam de ser lidos e nem
escritos. Faz um friozinho e você agora não sabe onde estão todos aqueles seus
amigos da festa na avenida São João. De alguns deles você nem lembra o nome e
nem sabe se estão vivos ou mortos ou tiveram destinos tortos.
Você, a essa altura, perdeu alguns
dentes, é acometido pela doença da feiura e está , convenhamos, cansado. Seus
pais se foram, seus filhos partiram, seus amores passaram e você percebe, que
descuido, que suas unhas estão sujas e seus cães estão dormindo lá fora que é o
que você devia estar fazendo para tentar voltar à festa. Afinal ,você ali, feliz
e jovem , dançando com sua vasta cabeleira armada está mais disposto que o velho
que você encontra no espelho quando vai mijar sem a menor possibilidade de ser
um retrato de Dorian Gray.
Ricardo Soares, madrugada de 3 de setembro de 2025
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