MEIO PROSA/MEIO POESIA NA OBTUSA GEOGRAFIA

 

                                  névoa em São Bernardo do Campo


MEIO PROSA/MEIO POESIA NA OBTUSA GEOGRAFIA

 

Nasci no meio do primeiro semestre do último ano da década de 50 / e daquele tempo não me lembro da casa onde vivia/na desconhecida geografia do bairro da Mooca paulistana/muito embora tenha vindo ao mundo num modesto hospital no bairro da Lapa

Nasci e ontem me via muito jovem num programa de televisão/com luz, com câmera, com pouca ação/ é quando na verdade me vejo/como uma assombração de mim mesmo/sem me lembrar do menino que via fantasmas nos cantos de um quarto em remota infância

Me vejo e me passo a limpo/alvoroçado garimpo de um tempo que jaz distante/em interessante estado de contemplação/quando ainda não havia descoberto os correios/as palavras/a literatura/ a biblioteca/ essa versão segura de paraíso /sem guizos amarrados no meu passado/ me fazendo lembrar de erros estúpidos e amores perdidos

Meio poema e meio prosa/vou avançando nessa glosa/em busca de um tempo fendido/no mistério que tem no coração todo rendido ao peso dos anos/ onde a expressão de carinho de pai e de mãe/vai se esvaindo/recordações que vão indo para uma torrencial cachoeira de andanças

Acordei com os olhos coçando e pinceladas de passados compridos/onde circos/ campinhos de futebol e laços de fita amarram o tempo que fluiu / não morri de tuberculose e tampouco de males do coração/ muito embora ele já tenha rateado e eu viva de prontidão/ para que diante da morte eu me comporte de maneira digna

Uma névoa quase febril me lembra outra, muito mais antiga/ que vinha da Serra do Mar e cobria São Bernardo do Campo/ escondendo um bambuzal/ o caminho para a escola e o medo de tudo/

Destemido fui algumas vezes/ em outras me caguei de medo e tive por certo tempo vergonha de cometer poesia/ fugi uma vez pelos trilhos desde a estação de São Carlos/ mas meu tio me recuperou de volta/ e cá estou a maturar devaneios

A solidão não dói/ nem quando eu respiro/ e chego à conclusão que nasci para viver apartado e com os filhos longe, aí pelo mundo/ e não fui reprovado, creio, na faina da paternidade/

Não me vejo como velho/ e não sou mais um menino/não quero lágrimas convulsas/ e nem traição/covardias e repulsas

Dentro de mim mora um cérebro indisciplinado/meio prosa e meio poesia/ sem lágrimas agora/ mas, também, sem risos falsos/ e assustado com a descoberta/ de que o mundo não é tão grande assim/ pois nos lugares em que estive, tantos deles inexplorados/ agora paira o véu do turismo de massa/ que a tudo pasteuriza e deixa sem graça

            Tenho olhos cada vez mais míopes e indispostos/para ver o que tenho que ver quando chegar a hora/do lado de fora não sei mais o que esperar/ e do lado de dentro vou me cerzindo/ pois o tempo, ora o tempo, ele vai indo...

 

Ricardo Soares – 16 de setembro de 2025- 9 da matina

 


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