FRAGMENTOS DA VIDA EM PROSA E GLOSA
FRAGMENTOS DA VIDA EM PROSA E GLOSA
Nasci ao fim da
primeira metade do ano de 1959, no bairro da Lapa, São Paulo, em noite fria
No momento do
triunfo dos socialistas em Cuba e da reta final da construção de Brasília e do
lançamento mundial da boneca Barbie e nada tive a ver com essas efemérides
Do hospital
onde nasci não guardo nem lembrança e nem da casa onde morava no bairro da Mooca
que mesmo hoje eu pouco visito e a partir daí vou acumulando vagas recordações
e pensamentos contrafeitos como fantasmas a rodar meu berço e o crescimento de
cabelos que já não possuo
Pouco sei ainda,
nessa tenra infância, da morte de parentes, primas da minha mãe, levadas por um
desastre aéreo sobre a baia de Guanabara
Também não sei
ainda do Pari, de Caçapava, de São Carlos, Aclimação e Nova Cantu, recantos que
fui visitando durante a vida , descobrindo açudes, campos de futebol, beiras de
rio e as histórias compridas e cuspidas por um tio de meu pai, jeito de coronel
interiorano, alto, magro, bebedor de café e chapeludo
Sempre parti
com alegria se a viagem era de trem e
ficava aborrecido quando desembarcava e meias elásticas da minha avó materna povoam
os meus pesadelos desde então
Não sei não,
mas comecei a envelhecer muito cedo e nem percebi e toda vez que subo degraus
para entrar num avião olho para trás em tom de despedida, que dia é hoje, de
chegada ou de partida?
Olho em volta e
vejo um ladrão que tentou pular o muro de casa pra roubar um botijão de gás e
vejo canarinhos aprisionados piando o amanhecer da família em volta do rádio
ouvindo um programa do Vicente Leporace
Vejo uma perua
Variant amarela a percorrer a nebulosa via Anchieta pela manhã , conduzida pelo
meu pai sonolento e de barba por fazer, nada do que ele planejou ousou
acontecer
E vejo rezas
esparsas, visitas a Santana, terreiros de umbanda, toscos centros espíritas na incessante
busca paterna pela espiritualidade
E vejo cremes
hidratantes modestos a amaciar as mãos da minha mãe e uma tosse comprida vinda
do peito do avô fumante que foi operado e ficou internado na Beneficência
Portuguesa
Aí , faço parêntesis
, porque sempre foi festejada a origem lusitana de parte da família com açorda,
bacalhau, cozido e rabanadas
E nas entradas
e saídas natalinas havia sempre no centro da sala um saco vermelho de papai
noel que nos trazia surpresas e uma saudade que durava o ano todo até que a gente
não percebesse quando foi o último natal em família
Então lembro
como se hoje fosse de toda a mobília na casa dos meus pais , no sobrado do avô,
no amplo apartamento da tia bem de vida ali perto da avenida Paulista que me
deslumbrava pela largura e bravura do trânsito e dos edifícios
E lembro do trajeto
de São Bernardo do Campo até a Vila Olímpia por um caminho que passava do lado
das matas do zoológico e do Jardim Botânico e entrava num bairro feio e poluído
com uma fundição chamada Aliperti
Subo correndo os
degraus da escada da minha casa e sei que agora durmo num quarto miúdo junto
das minhas irmãs e o pé da minha cama fica quase no limite da porta o que me
assombra e me deixa suscetível a ser tocado por fantasmas
Nessa casa se
acordava muito cedo, a padaria da esquina nem aberta estava e a gente comia pão
dormido e logo depois de eu partir para a escola minha mãe ia escolher feijão para
o almoço, grão a grão num caminho ilógico
Fui bem na
escola no primeiro grau, péssimo no segundo e brincar de ler e escrever já era
sinônimo de prazer e alegria com Lobato, Viriato, os pequenos e a bíblia, Scaramouche
, o fazedor de reis
Das leis da
vida fui aprendendo aos poucos com trancos e barrancos. Ônibus lotados, cheiros
adocicados na longa jornada entre o ABC paulista e o centro de São Paulo onde
eu pagava a prestação da casa dos meus pais num escritório do Banco Nacional de
Habitação
Passava quase
sempre defronte à casa Califórnia , mas quase nunca tinha dinheiro pra comer o
delicioso cachorro quente no meu coração repleto de pipocas murchas
Assim foi sendo
com o experimento inicial da solidão de menino, bolas de gude, futebol de botão,
jogos de futebol em terrenos baldios com bolas péssimas e improvisadas e a mãe
de um amigo gritando seu nome : Dalllllltonnnnnn e eu nem sabia que esse seria
o nome de um dos meus escritores preferidos
Nessa meninice
conheci heróis e covardes, valentões e cagalhões, bati e apanhei, cresci e bem depois
acasalei e confesso que isso foi tarde e eu tinha vergonha de ser virjão com
medo de crescer pelo na mão
E no meio disso
tudo teve doçura, sonhos comprados através da cerca do grupo escolar, enormes e
amarelos a despejar creme e doçura e eu esperando as férias para ir a Praia
Grande ver filmes na matinê do cine Yara e conversar sobre estrelas com meu
amigo Jorge da Pompéia
O trajeto já é
longo e o tempo é curto, fiz faculdade e dei de lidar e ganhar a vida desde
cedo com palavras e nelas agora mesmo aqui me enrosco, aqui me embosco em busca
do tempo fendido, quase um suplicar para pedir mais um tempo estendido pois é bom
apesar de tudo o desenrolar da vida
De que valem as
memórias, as vigílias, aventuras, tantas estradas literalmente percorridas, versos,
amores, dores, cores, cães que me festejaram pelo caminho?
Misturo
Patagônia com Lençóis Maranhenses, chapada Diamantina com terrenos no Jardim
Canhema em Diadema, problema que foi perder meu carro em Ipanema, aurora, pôr
de sol, pastelaria chinesa, força para empurrar a vida e encarar a morte,
desejo no trecho que ainda falta uma boa
sorte.
Ricardo
Soares, manhã de 20 de outubro de 2025
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